José Sarney, aos 94 anos, ainda mantém um raciocínio ágil e uma postura conciliatória, apesar da voz frágil e das mãos levemente trêmulas. Acompanhado por um enfermeiro, caminha com dificuldade em sua residência em Brasília, decorada com obras de artistas como Cândido Portinari e Burle Marx. De sua ampla varanda, com vista para o Lago Paranoá, recebe personalidades de diferentes espectros políticos, como o presidente Lula (PT) e o ex-presidente Michel Temer (MDB).

No final da tarde de 7 de março, enquanto aguardava a entrevista, Sarney conversava ao telefone com Julio María Sanguinetti, ex-presidente do Uruguai, que manifestou a intenção de comparecer a um evento em sua homenagem, marcado para o dia 15 em Brasília.

A trajetória de Sarney na Presidência começou em 15 de março de 1985, quando assumiu o cargo devido à internação de Tancredo Neves, que faleceu em 21 de abril daquele ano. Sarney tinha a missão de conduzir a transição democrática, enfrentando desafios e a resistência de diversos setores. “Fui um presidente marcado para ser deposto, como muitos outros da história do Brasil”, afirmou.

Durante a entrevista, ele relembrou sua relação com Juscelino Kubitschek, comentou sobre a depressão que enfrentou nos anos 1980, e abordou as acusações de favorecimento político para a extensão de seu mandato para cinco anos. Também falou sobre sua relação com os militares, a complexidade do Plano Cruzado e a falta de lideranças políticas no Brasil atual.

Indagado sobre sua saúde, Sarney respondeu: “Estou muito bem. Graças a Deus, estou sobrevivendo bem.”

Questionado sobre a resistência à sua indicação como vice de Tancredo, Sarney afirmou que quase não houve oposição. “O Aureliano [Chaves] quase me impôs como candidato a vice-presidente. Ele disse que sem o Sarney não havia Aliança Democrática.”

Após deixar o PDS, partido que apoiava a ditadura, acreditava que sua carreira política nacional estaria encerrada. No entanto, Ulysses Guimarães insistiu para que ele apoiasse Tancredo, resultando na formação de um grupo político decisivo.

“Aureliano teve um peso muito grande, me obrigou a aceitar. Tancredo mandou me chamar a Minas Gerais e disse que, se eu não aceitasse, ele não renunciaria ao governo do estado para se candidatar no Colégio Eleitoral”, recordou Sarney.

O ex-presidente também confirmou que enfrentou um episódio de depressão na época, descrito na biografia escrita por Regina Echeverria. “Tive uma depressão, mas superei esse problema rapidamente. Essa é a pior doença que tem no mundo porque é uma doença da alma, não é do corpo.”

Sarney conhecia Tancredo desde os anos 1950, quando ambos atuavam na política, embora estivessem em campos opostos. “O Tancredo era do PSD, e eu, da UDN. A UDN fazia uma oposição muito grande ao Juscelino Kubitschek, e eu fui muito injusto com ele.”

Após romper com o PDS, Tancredo o visitou para pedir seu apoio e, posteriormente, o chamou a Minas Gerais. Sarney destacou a influência de Ulysses nesse processo. “Ulysses me namorou dois meses para essa posição”, disse, rindo.

Ao assumir a Presidência interinamente, sua primeira preocupação era garantir a estabilidade política. “Eu não queria assumir a Presidência, queria esperar o Tancredo. Mas havia a necessidade de assumir porque todos achavam, inclusive Ulysses e Tancredo, que, se houvesse qualquer dúvida sobre a posse, corríamos um risco grande de ter problemas.”

Ele relatou que Walter Pires, então ministro do Exército de João Figueiredo, chegou a mobilizar os quartéis para impedir sua posse. “Figueiredo achava que deveria ser o Ulysses. Naquele instante, nós corríamos o perigo de ter uma volta dos militares ao poder.”

Sarney afirmou que sua relação com os militares foi facilitada pela escolha de Leônidas Pires Gonçalves como ministro do Exército. “Logo que assumi, reuni os generais e disse que governaria com duas diretrizes. A primeira: todo comandante tem o dever de zelar pelos seus subordinados. Eu era o comandante em chefe e zelar pelos meus subordinados era minha responsabilidade.”

A segunda diretriz era que a transição seria conduzida com os militares, e não contra eles. “Um dos momentos mais difíceis foi a Lei da Anistia, e nós anistiamos os dois lados.”

Questionado sobre os riscos para a transição, Sarney foi reservado: “Infelizmente, não posso revelar todos os detalhes porque muitas pessoas envolvidas já faleceram.”

Sarney destacou a importância da Constituição de 1988. “Foi a Constituição possível, mas tem sido capaz de atravessar todas as nossas dificuldades. Entre as mais graves, os dois impeachments e o 8 de janeiro.”

Sobre as acusações de favorecimento a parlamentares para aprovar seu mandato de cinco anos, negou qualquer irregularidade. “Isso era fake news, como se diz hoje. Diziam que eu concedi emissoras de TV, mas depois de mim fizeram três, quatro vezes mais concessões.”

Ele explicou que seu mandato inicialmente seria de seis anos e que abdicou de um. “No meu caso, foi diferente. Eu tinha seis anos de mandato, abdiquei de um e todos acharam que eu queria mais um ano.”

Sarney também apontou as dificuldades da sucessão presidencial naquele momento. “Tínhamos muitos candidatos, e as Forças Armadas não aceitavam.”

Sobre o Plano Cruzado, Sarney reconheceu seus problemas, mas destacou seu impacto político. “O Cruzado foi uma decisão corajosa. Abandonei a fórmula clássica do FMI de recessão para adotar uma nova abordagem.”

Ele afirmou que o plano ajudou a garantir a transição democrática ao fortalecer as bancadas no Congresso e viabilizar a Constituinte. “Isso permitiu aprovar a Constituição, o que era muito difícil.”

Perguntado sobre a denúncia contra Jair Bolsonaro e outros envolvidos nos atos de 8 de janeiro, Sarney evitou juízos. “Tenho por norma nem censurar meus antecessores nem meus sucessores. Mas a depredação dos três Poderes foi terrível. A Justiça pode e deve punir.”

Sobre o terceiro mandato de Lula, fez uma análise ponderada. “Muitas vezes, governamos em tempos de fartura, outras, em tempos de escassez. Lula vive as circunstâncias do momento. No primeiro e no segundo mandatos, foi extraordinário. No terceiro, está indo bem, mas enfrenta problemas que não existiram antes.”

Sarney lamentou a ausência de grandes lideranças políticas. “Os quadros de esquerda são muito fracos. E os de direita são mais fracos ainda. Estamos numa fase de ausência muito grande de lideranças.”

Ao final, Sarney resumiu sua trajetória. “Quero ser lembrado como o presidente que fez a transição democrática no Brasil e implantou um regime democrático duradouro. A democracia não morreu nas minhas mãos.”

Sua resposta final reflete sua visão de sua própria importância na história política do Brasil. “Hoje, vivemos o período mais longo de democracia contínua na nossa história. Isso foi possível pelo desempenho que tive na Presidência: conciliador, homem do diálogo, sempre acreditando nas instituições democráticas.”

 

Com informações da Folha de São Paulo.

 

Foto: Pedro Ladeira