Na história da literatura mundial são raros os escritores cujo gênio produz grandes obras de arte. Dois romances podem ser reunidos devido às semelhanças em seus aspectos da linguagem: Ulisses, do escritor irlandês James Joyce, e Grande Sertão: Veredas, do autor brasileiro João Guimarães Rosa.

Porque eles não são puramente realistas, eles fazem o leitor cavar fundo em suas narrativas. Um grande número de comparações já se fez entre esses dois romances no campo da literatura.

Além da linguagem, temas como bem e mal, inferno e céu, paixão, monotonia da terra seca e noites cheias de pesadelos, ansiedade e razão de viver são desenvolvidas criativamente. Seja naquele dia insípido e inconcebível que Joyce foi dado a descrever, ou nas terras áridas e universais que Rosa foi dado a atravessar, em cada caso os escritores enfrentam a mesma experiência de sua própria perspectiva.

Entende-se que isso é semelhante à experiência estética de escrever um romance. Um romance é a expressão estética de uma realidade, e a expressão é a linguagem, a mesma linguagem que é o elemento principal no enredo das obras de Joyce e Rosa.
Caminho mágico

A linguagem é tudo nesses dois romances. Isto é criação; e, mais ainda, é a poesia, um caminho mágico que conduz um autor ao outro, um romance sobre o outro romance; e ainda mais: a linguagem é a lupa mágica que aproxima leitores e autores da jornada solitária das personagens, em linguagem em si. É na poesia e na expressão desses romances que o leitor descobre a “espírito” da criação.

Cada comparação entre Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, e Ulysses, de James Joyce, deve ser realizada do ponto de vista de sua linguagem, altamente percebida por um leitor sensível de poesia. Isso ocorre porque ambos os romances são algo essencialmente criado no campo da Literatura, romances produzidos na literatura, algo totalmente literário.

Romances feitos de literatura, romances que têm o próprio significante literário como seu material significativo. Joyce foi contrastado com Rosa, no entanto, devemos ter em mente suas especificidades.

O romance de Joyce tem uma música – Faça as sereias cantar? – é a musicalidade da língua inglesa que eleva as palavras mais obsoletas ao sublime; O romance de Rosa também tem música – a flauta de Pan? – é a oralidade das palavras que saem da memória para mostrar exatamente onde as coisas estão. Mas a consciência do romance é a mesma nos dois escritores: de Homero a Joyce, de Joyce a Guimarães Rosa, tudo acaba em romance, romance literário.

Narrativa

E algo permanece: a narrativa, feita de aventuras e desventuras; narrativa que é linguagem e linguagem que é, essencialmente, poesia. Aqui estamos sob o sopro do “Espírito”, o “Espírito da Literatura”; a realidade é a própria literatura. E a linguagem criada pelo escritor, que é abraçada pelo “Espírito”, fará com que a realidade visível seja mostrada em suas particularidades e peculiaridades.

A realidade, neste caso, funciona apenas como uma oportunidade, e a própria literatura supera seus fundamentos quando tenta recriá-la. Quando somos forçados a refletir sobre a realidade desses dois romances, somos levados a ver outras imagens nas palavras, outras realidades, realidades que sentimos como as mais belas e que estão além de qualquer espaço onde poderiam ser confinados.

Tanto Guimarães Rosa como James Joyce desejam fazer o leitor sentir a ação da linguagem que eles criaram usando, em muitas passagens, algumas expressões que visam a reflexão e a epifania. A força das expressões utilizadas implica a clareza epifânica que se irradia ao longo da narrativa e, de forma fragmentária, inverte o início e o fim da narrativa para mostrar, na forma dos fragmentos, a rapidez com que as coisas são lembradas e recapituladas.

No caso de Joyce, temos a cidade, Dublin, na Irlanda; no caso de Rosa, há o sertão seco de Minas Gerais, no Brasil. Cidade e sertão, tudo pensado para o leitor não esquecer que nossa existência é composta de confusão e caos. Grande Sertão: Veredas é o mundo; Ulisses está em toda parte. O sertão de Rosa é o mundo, é em toda parte. “Sertão é sem lugar… Sertão é dentro da gente…” [“Sertão não tem lugar… O sertão está dentro de nós”] – escreve Rosa. A Dublin de Joyce é a urbe sem orbe.

Sombras e culpas

A verdadeira realidade desses dois romances em sua concepção épica moderna só pode ser percebida em linguagem que, como paródia, contém a verdadeira personalidade de seus personagens; personagens tatuados de sombras e culpas que só a linguagem da poesia possibilita que os leitores possam ver.

James Joyce, um irlandês considerado o maior escritor do século XX; Guimarães Rosa, um escritor brasileiro conhecido até onde a língua portuguesa pode alcançar e tanto quanto alguém poderia desfrutar de seu romance.

Enquanto se poderia argumentar que James Joyce escreveu Ulysses em algum tipo de novo inglês e que Shakespeare riria dele no outro mundo, podemos dizer que, em Grande Sertão: Veredas, Rosa criava palavras e escrevia em um estilo tão diferente que Padre Vieira zombava dele em seu Grande Sermão da Sexagésima. Sabemos que, nesse sermão, Vieira se concentra em uma coisa: a forma como os pregadores de seu tempo, o século XVII, pregam.

Este sermão é realmente um espetáculo teatral da linguagem: as palavras, as repetições, as citações e as recitações impõem essa teatralidade à voz do sermão. Ao escrever seus romances, Joyce e Rosa provavelmente sabiam do perigo que a linguagem usada nessas obras poderia causar.

Como grandes leitores, não podiam ignorar que estavam na vanguarda, antecipando a revelação dos segredos da própria criação artística, pois não há criador, isto é, escritor, sem o conhecimento da Ciência. E aqui coincidem James Joyce e Rosa.

Eles sabiam antes de escrever; tinham a ciência poética e, por isso, expunham sua própria linguagem ao perigo e à ironia da desconstrução paródica, épica por excelência. A paródia é o eixo paradigmático que une esses dois grandes escritores, tão distantes do ponto de vista geográfico, e tão próximos do ponto de vista da literatura.

Há escritores e filósofos que foram lidos por Rosa e Joyce: Vico, Homero, Virgílio, Ovídio, Horácio, Aristóteles, Platão, Cervantes, Goethe, Mallarmé, Flaubert, Dante Alighiere, entre outros. Escritores que fazem os leitores se perderem em suas passagens obscuras; a confluência desses dois escritores não pertence aos meros fatos da vida real, mas atinge a ordem do mito, apenas captada através da literatura.

Campo de discussão

Comparar Grande Sertão: Veredas ao Ulisses de Joyce não é uma tarefa estranha no campo dos estudos literários comparados. Nesses dois romances, encontramos um vasto campo de discussão. A exótica viagem que Riobaldo faz pela encruzilhada do Grande Sertão: Veredas indica coincidências marcantes com a viagem de Stephen/Bloom pelas ruas, vielas e encruzilhadas da Dublin de Joyce em 16 de junho de 1904.

Essas coincidências se expressam essencialmente na linguagem e nos procedimentos de construção e desconstrução nas obras de ambos os autores.

Os procedimentos épicos de construção e desconstrução significam a força e o trabalho da consciência da linguagem que foi depositada nessas obras, proporcionando ao leitor uma compreensão lógica da matéria nelas. O material épico por excelência é épico no sentido de fragmentação da linguagem, que é a fragmentação e erudição da memória. Ressaltamos aqui o significado épico da memória.

Como é possível ver em Grande Sertão: Veredas, os personagens Riobaldo/Diadorim vão e vêm, se movimentam, trazendo lembranças; reminiscências de animais, riachos, lugares, batalhas… Em Ulisses acontece a mesma coisa: suas páginas estão cheias de lembranças; Ulisses é a memória homérica que o leitor perscruta em todos os seus episódios.

Em uma relação muito clara (baseada em uma profunda consciência da linguagem épica/paródica processual, a epopeia é um recurso da paródia), as memórias e os fenômenos se sobrepõem e se entrelaçam a ponto de a retomada do passado trazer à tona o novo, que é tão epicamente implantado na forma de paródia.

Em Grande Sertão: Veredas assim como em Ulisses se vê tudo parodicamente, de forma (des)construída: nada parece começar; nada parece terminar no processo dessas duas narrativas mágicas.

Evento crucial

Voltaremos ao momento em que o Ulisses de Joyce é lançado pela primeira vez, em 1922, em Paris. É um evento crucial para todas as literaturas da Europa e, claro, para a literatura mundial. É um momento em que a própria literatura está sendo ameaçada pelas experiências das vanguardas. Certamente, artistas e amantes da literatura folhearam o livro de Joyce para descobrir “alguma novidade que importasse”.

Sem dúvida, Ulisses surpreendeu e decepcionou muitos deles. Mas uma coisa é certa: a influência direta ou indireta que esta obra exerceu, e que ainda exerce, sobre gerações e gerações de escritores na Europa e na América. No Brasil, por exemplo, isso pode ser notado principalmente na crítica lançada por Oswald de Andrade, continuada principalmente por Guimarães Rosa e Clarice Lispector.

Clarice Lispector foi inspirada em Joyce. Aqui vale a pena relembrar o romance Perto do Coração Selvagem, seu primeiro livro, publicado em 1944, quando Clarice tinha dezessete anos. Álvaro Lins, considerado um dos melhores críticos do país, escreveu sobre Perto do Coração Selvagem: “[Este é] nosso primeiro romance dentro do espírito e da técnica de Joyce e Virginia Woolf”2 O título deste romance é tirado de O retrato do artista enquanto jovem, cujo autor costumava ser tão difícil e tão familiar entre nossos autores mais radicais.

Sugiro aqui uma “poética sincrônica” entre esses autores que foram contaminados pelo fluxo fluente da linguagem de Joyce, marcando suas especificidades, mas sempre percebendo que o hábito humano de imitar é universal e que James Joyce para nós é o grande mestre dos autores que leu seu texto.

Portanto, influências e confluências existem e sempre existirão. O leitor que estiver atento a isso poderá conhecer como autores, como James Joyce ou Guimarães Rosa, conceberam suas obras. Pisando em terreno um pouco mais firme na literatura brasileira, fica mais fácil entender, por exemplo, as fortes influências estrangeiras (principalmente britânicas) nos romances de Machado de Assis.
Sua criação reflete a ampla leitura do romance inglês; seu realismo é literário, não engana os leitores com o falso realismo local. Um leitor ou escritor fora dessa tradição não pode estabelecer nenhuma relação entre Joyce e Rosa.

Além disso, um crítico ligado ao passado histórico não pode admitir a fecunda influência de Joyce sobre os principais autores das gerações vindouras. O difícil é entender o universo de sua tradição, o da poesia homérica, cheio de mitologia, que exige uma compreensão de coisas que quase ninguém conhece.

É aí que o romance de Joyce adquire as características da Odisseia, sua linguagem se torna cada vez mais densa. Por exemplo, Stephen recebe artificialmente o nome e o papel de Dedalus; Molly, em Ulisses, é Penélope, etc. Joyce procede assim ao longo de sua obra. Ele expõe o mito na forma de paródia e riso e o envolve na linguagem, deixando-o escondido entre diferentes imagens.

Ulisses retorcido

Da mesma forma, Grande Sertão: Veredas é um Ulisses retorcido por mitologias. Riobaldo está loucamente apaixonado nas terras secas da mitologia; sofre por amor ao seu mitológico Diadorim. Dessa forma, esses dois romances só podem ser compreendidos por leitores que mergulham no segredo de sua linguagem; aí reside o segredo de cada romance.

Já foi dito que o verdadeiro protagonista de Ulysses não é o senhor Bloom, nem Stephen, mas é a linguagem. Pode-se dizer também do Grande Sertão: Veredas. Seu verdadeiro protagonista não é Riobaldo nem Diadorim, mas a linguagem.

Joyce e Rosa: dois criadores ligados por uma linhagem e tradição comuns, uma tradição épica de construção e desconstrução do romance que rompeu com a tradição do próprio romance.

Eles romperam com a ordem tradicional e inauguraram uma nova expressão, ou seja, deram uma nova linguagem ao romance, onde o passado e o presente se reencontram, o primitivo e o erudito, a visão do Oriente e do Ocidente, o grego e o Mundo latino, autores de diferentes épocas e literaturas, o regional como expressão local e citações universais, tudo ressaltando a difícil estruturação de um novo romance com sua técnica narrativa fragmentada.

Tudo isso forma a linguagem complexa do romance de Joyce, a linguagem complexa do romance de Rosa.

Repito: Grande Sertão: Veredas é um Ulisses torcido. Astutamente, Rosa tece uma teia lendária que fala do Sertão; engenhoso, falou do silêncio, do deserto e da solidão de seus personagens. Sentimos a aridez do Sertão como sentimos a insipidez da Dublin urbana em Joyce.

O fato de sentirmos a solidão de Riobaldo e podermos falar sobre o monólogo dos personagens de Joyce é uma compreensão estética da comparação entre os dois autores. Por tudo isso, há uma visão complexa desses romances complexos.

O leitor pode observar como esses dois autores transformam tudo o que é real com sua metamorfose a partir do fragmento e da linguagem. Os próprios personagens, com seus sentimentos humanos, são transformados pela força e natureza da linguagem, linguagem fragmentada, mas em virtude de sua natureza poética, inviolável. Rosa, assim como Joyce, levam essa fragmentação épica ao extremo.

Fonte: Vermelho