Ângela Carrato – jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG

A mídia corporativa brasileira, aquela na qual prevalecem os interesses do patrão e dos anunciantes, bateu seu próprio recorde negativo na semana que passou.

Deixou de noticiar ou noticiou como se fosse algo trivial, quando não atacou, algumas das mais importantes informações de todos os tempos para a população brasileira. Informações que fazem a diferença para entender o que se passou no país nos últimos sete anos e a importância das decisões tomadas na XV Cúpula dos BRICS, na África do Sul.

Na segunda-feira, 21 de agosto, o Tribunal Federal da 1ª Região (TRF-1), órgão de segunda instância da Justiça, cuja sede é Brasília, rejeitou um recurso e manteve o arquivamento da última ação de improbidade administrativa contra a ex-presidente Dilma Rousseff por causa das chamadas “pedaladas fiscais”.

Ao rejeitar este recurso, a Justiça brasileira atesta que Dilma não cometeu crime de responsabilidade e que o impeachment contra ela não passou de um golpe de estado de tipo novo, no qual teve protagonismo o Parlamento, a própria Justiça e a mídia.

Golpes de estado de tipo novo têm nome e sobrenome: guerra híbrida.

Mesmo este conceito estando tipificado na bibliografia da Ciência Política, Sociologia e Relações Internacionais, a mídia corporativa brasileira continua ignorando a sua existência e descumprindo sua função essencial que é a de informar.

Sob a alegação de que Dilma havia cometido “pedalada fiscal”, esta mídia promoveu uma das mais sórdidas campanhas de que se tem notícia na história brasileira. Campanha que em nada ficou a dever às acusações, igualmente infundadas, do “mar de lama”, que levou o presidente Getúlio Vargas ao suicídio em 23 de agosto de 1954.

Dilma não autorizou as tais “pedaladas fiscais”, operações de crédito vedadas pelos órgãos de controle, da mesma forma que nunca se encontrou indícios de que o governo de Getúlio tivesse mergulhado em corrupção, por mais que os inimigos de ambos tenham escarafunchado as contas públicas.

Se a mídia corporativa brasileira não tivesse sido parte deste golpe, ela deveria ter publicado, em manchete, que não houve impeachment e sim uma trama para derrubar uma presidente democraticamente eleita e colocar em seu lugar o vice Michel Temer, com o objetivo de implementar a agenda neoliberal derrotada nas urnas e rechaçada pela própria Dilma.

Dito de outra forma, derrubar Dilma era fundamental para retirar direitos dos trabalhadores (a dita Reforma Trabalhista), destruir o ensino público fundamental (a tal Reforma do Ensino Médio), inviabilizar a aposentadoria da maioria dos brasileiros (a enganosa Reforma da Previdência), destruir as empreiteiras nacionais, além de privatizar a Eletrobras e entregar a Petrobras para os interesses estrangeiros.

Não é coincidência que as ações colocadas em prática por Temer e depois por Jair Bolsonaro são praticamente as mesmas contra as quais Getúlio também se bateu. Travar o desenvolvimento do Brasil, com ações contra a Eletrobras e a Petrobras, e submeter a população brasileira aos interesses da exploração sem limites do capital internacional esteve, desde sempre, na raiz de todos os golpes contra governos progressistas aqui e nos demais países da América Latina.

Quem ainda não leu, precisa ler, com urgência, a Carta Testamento de Getúlio Vargas. Ela é um roteiro atualizadíssimo sobre o que aconteceu e continua acontecendo contra os governos populares e que defendem a soberana do Brasil.

Numa semana emblemática, em que Dilma foi completamente inocentada e na qual se marcou o 69º ano do suicídio de Getúlio, não há explicação para o silêncio da mídia a não ser sua venalidade e compromisso com quem joga a favor do inimigo.

Em Angola, para onde viajou na sexta-feira, após participar da histórica Cúpula do BRICS, Lula não deixou de dar o seu recado. “O Brasil deve desculpas à presidente Dilma, porque ela foi cassada de forma leviana”, afirmou.

Quem se lembra de multidões nas ruas chamando Dilma de corrupta, incompetente e até de louca, estimuladas por uma mídia que não parava de atacá-la da forma mais sórdida?

Até agora não vi editoriais fazendo o mea culpa e, a julgar pelo andar da carruagem, dificilmente isso acontecerá.

Mas o mundo dá voltas.

Dilma não só foi inocentada, como estava presente na foto oficial do encerramento da XV Cúpula do BRICS, que a mídia corporativa brasileira também escondeu do seu respeitável público. Dilma, desde março, é a presidente do NBD, o importante banco de desenvolvimento multilateral da instituição, e, pelo que se sabe, não houve, até agora, sequer interesse da mídia corporativa brasileira em entrevistá-la.

Reconheço que não deve ser fácil para uma mídia que apostou no fim do PT e na criminalização de suas principais lideranças, noticiar que Lula e Dilma estão no centro da política nacional e também nas grandes mudanças na ordem política internacional.

No entanto, por dever de ofício, essa mídia teria obrigação de noticiar tais fatos ou mudar de ramo. Uma mídia que esconde as notícias e manipula as informações está fadada à lixeira da história.

Quais informações foram sonegadas da população pela mídia brasileira em se tratando da cúpula do BRICS?

A mais importante é a de que essa reunião marcou o início de uma nova era nas relações internacionais, com a progressiva derrocada do poder imperialista dos Estados Unidos e a ascensão de um mundo multipolar, onde o chamado Sul Global (ex-Terceiro Mundo) passa a ter voz e vez.

Ao contrário do noticiado, não houve divergência entre os cinco membros fundadores do bloco (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) no que diz respeito à sua expansão.

Nos últimos dias, a mídia corporativa brasileira insistiu em divulgar que havia divisão no bloco e que o Brasil se opunha ao ingresso de novos membros.

Intriga e mentira das grossas!

O Brasil não só apoiou como patrocinou o ingresso da vizinha Argentina, que, ao lado do Irã, Arábia Saudita, Emirados Árabes, Egito e Etiópia, também passam a compor o BRICS, agora rebatizado como BRICS Mais (BRICS Plus).

Trata-se verdadeiramente do início de um novo tempo, marcado pelo aumento da influência do bloco em regiões do mundo onde até então sua presença era bastante limitada.

O ingresso desses novos membros vai adicionar maior capital político ao BRICS, que terá melhores condições para lidar com o imperialismo cultural do chamado Ocidente. Imperialismo representado pela vergonhosa prática dos Estados Unidos e de países europeus de querer ensinar aos outros países como eles devem viver e se comportar.

Ao contrário de continuar tentando demonizar a China, a mídia brasileira deveria ter mostrado o recente papel que ela desempenhou para a normalização das relações entre Arábia Saudita e Irã, cuja divergência sempre foi estimulada pelos Estados Unidos, colocando em prática o velho mandamento “dividir para imperar”.

Deveria ter mostrado, igualmente, que esses dois países do Oriente Médio que aderiram ao BRICS são ricos em recursos naturais representando, junto com Rússia, Índia e Brasil, perto de 70% das reservas mundiais de petróleo e gás.

Geopoliticamente falando, essa é a informação mais relevante do século!

Já a entrada do Egito no grupo foi um claro sinal de que o BRICS está atento ao que aconteceu nos verões passados.

Pouco antes do Brasil, o Egito vivenciou as turbulências da impropriamente chamada Primavera Árabe, que desestabilizou diversos países no Norte da África e no Oriente Médio em 2011 e que contou com a interferência externa das potências ocidentais de sempre.

Primavera Árabe é também um nome fantasia para guerra híbrida, que assume características peculiares em cada região ou país onde é travada.

A bola da vez agora é a Argentina.

Não por acaso, o ingresso do país vizinho no BRICS pode ser visto como uma forma de se contrapor ao patrocínio das potencias imperialistas à candidatura do extremista de direita Javier Milei à presidência da República.

Milei, uma espécie piorada de Bolsonaro, que se apresenta como “anarcocapitalista”, não passa de um joguete do império para tentar cravar um punhal na integração latino-americana, principal linha de ação da política externa do terceiro mandato de Lula, e que conta com o total apoio do governo de Alberto Fernández.

Mesmo sendo um extremista feroz, a mídia corporativa dos Estados Unidos e da Europa tem se empenhado em naturalizá-lo como um tipo excêntrico, no que vem sendo seguida por seus capachos na mídia brasileira.

Um político que defende a adoção do dólar como moeda nacional, que quer o fim da educação e da saúde pública, que anuncia que permitirá a venda de órgãos humanos e a de bebes, como faz Milei, não é apenas excêntrico. É um ser pior do que Hitler, Mussolini ou Bolsonaro, se é possível pensar em uma escala para o mal.

Mesmo a Argentina tendo um histórico de diversificar suas parcerias políticas e econômicas e sua adesão ao BRICS sendo fruto disso, Milei anunciou que, se eleito, vai cortar relações com a China, retirar seu país do bloco, bem como do Mercosul, da Unasul e da Celac. Sem se preocupar com o ridículo, atacou Lula e a ex-presidente de seu país, Cristina Kirchner, chamando-os de “comunistas”.

Impossível ficar mais óbvio a quem serve.

Na disputa pela Casa Rosada está em jogo não apenas o poder interno, mas o futuro da integração latino-americana.

Continuaremos ou não sendo o “quintal” do Tio Sam?

Por tudo isso, a adesão desses novos países ao BRICS é um dos principais eventos do século XXI. Mais ainda. Instituições multilaterais como o NBD facilitarão a vida de países como a Argentina, que hoje são obrigados a se curvar às exigências do FMI e do Banco Mundial, nos quais os Estados Unidos e os países europeus detêm exorbitante poder de voto.

É importante lembrar que nesta cúpula do BRICS, o presidente Lula destacou que o bloco já começa a pensar na necessidade de desenvolver uma moeda comum para transações entre seus membros. O dólar, como moeda única nessas transações, está com os dias contados.

Um assunto de tamanha importância e dito por Lula não deveria merecer manchetes na mídia nacional?

É óbvio que sim. Mas o que fez a mídia golpista brasileira? Desconheceu a fala de Lula em seu noticiário, preferindo atacá-la virulentamente em editoriais como os publicados pelos jornais O Globo, Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo. Editorias que parecem ter sido ditados a partir de Washington.

Numa das provas mais evidentes de submissão ao interesse do Tio Sam, seja qual for o ocupante da Casa Branca, a mídia brasileira abriu os mais generosos espaços para a foto de Donald Trump indiciado, evento transformando pelos marqueteiros do ex-presidente no início antecipado de sua campanha eleitoral.

Isso, ao mesmo tempo em que escondeu a foto do século, na qual os dirigentes do BRICS, de mãos dadas e braços para cima, comemoravam o fim da cúpula, a vitória da maioria global e a abertura de um novo tempo para o mundo.

Até quando a população brasileira continuará sendo enganada por tamanha manipulação da realidade?

Até quando prevalecerão as não notícias?