A Lei 14.026, publicada em 16 de julho de 2020, introduziu diversas alterações à Lei 11.445/2007, conhecida como o Marco Legal do Saneamento no país. Dentre essas alterações há a obrigatoriedade de os estados criarem, no prazo de um ano da publicação da lei, uma estrutura de regionalização do saneamento em seus territórios. Este prazo vence em julho de 2022, e o governo mineiro já encaminhou à Assembleia Legislativa de Minas Gerais o projeto de lei PL nº. 2884, contendo sua proposta de regionalização.
A proposta da regionalização mineira foi coordenada pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável – SEMAD, com apoio da Agência Reguladora de Serviços de Abastecimento de Água e Esgotamento Sanitário do Estado de Minas Gerais – ARSAE MG – e do Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais – BDMG. Em linhas gerais, a proposta, desde seu desenvolvimento até sua consolidação, espelha com fidelidade as prerrogativas e a ideologia do governo Zema.
Essa proposta foi precedida de um processo de discussão que contou com a disponibilização em site da WEB do anteprojeto de lei e de seus anexos, contendo a listagem dos municípios que integram cada uma das unidades regionais de água e esgotos (URAE’s) e de resíduos sólidos (URGR’s), seguidos de uma única audiência pública para apresentação e esclarecimento de eventuais dúvidas.
Minas Gerais tem 853 municípios, que são constitucionalmente os titulares dos serviços de saneamento, e nenhum deles foi ouvido durante a construção da proposta que é consolidada no PL; tampouco foram convidados a participar dessa construção os deputados estaduais, deixando de fora deste esforço os 77 representantes da ALMG, e que serão os responsáveis por deliberar sobre o PL. Logo, a proposta de regionalização é uma expressão do Governo Zema: não guarda qualquer identidade com a população mineira e com seus representantes, desprovida que foi de qualquer participação democrática.
Outro aspecto importante de ressaltar é a escolha do modelo de regionalização proposto pela equipe de Zema. De acordo com a Lei 14.026/2020, a regionalização poderia ter sido proposta por meio de lei complementar criando microrregiões de saneamento, e que se somariam às duas regiões metropolitanas do estado (RMBH e RMVA) como os arranjos territoriais que tratariam o saneamento como matéria de interesse comum. Nessa opção, aprovada a lei complementar na ALMG, a adesão dos municípios seria compulsória, preservando a integridade da autonomia municipal, mesmo que obrigada a acatar as deliberações colegiadas da instância de governança em cada um dos espaços regionais.
No caso das unidades regionais de saneamento, modelo escolhido pela equipe de Zema, magnífica-se o critério puramente econômico-financeiro negocial, sendo a adesão do município voluntária – embora aquele município que opte por não aderir seja penalizado com o impedimento de acesso a recursos da União, aos financiamentos com recursos da União ou geridos por órgãos federais.
Assim, sob um governo que se elegeu com um discurso privatista, e com uma proposta fundamentada na premissa de licitar a prestação dos serviços nas unidades regionais, não é difícil compreender que os municípios sofrerão pressão do estado para aderirem e manterem a viabilidade estudada, trazendo alguns, ainda, um compromisso de apoiarem a licitação dos serviços em um futuro breve. Nesse último contexto, o modelo de regionalização escolhido pela equipe de Zema se presta a adiantar em negociações de uma futura extinção de contratos entre municípios e Copasa, promovendo um avanço em um dos interesses principais do governador: a desestatização daquela Companhia, mesmo que de forma indireta.
O interesse da equipe de Zema em elaborar uma proposta de regionalização com olhar na venda da prestação dos serviços, e não na sua universalização, se fundamenta em dois aspectos: (i) uma questão ideológica, já por demais manifestada pelo governador, e que tira do estado a responsabilidade de promover, através do saneamento básico, o bem-estar de sua população; e (ii) a ânsia de apurar recursos financeiros por meio de outorga nessa venda, e o mais rápido possível, de modo a sanar, ou pelo menos amenizar, a grave situação fiscal do estado.
Essa estratégia de obtenção de recursos por meio de outorgas impostas na venda dos serviços foi alardeada nos eventos dos leilões da Região Metropolitana de Maceió, em Alagoas, e no leilão do estado do Rio de Janeiro. Os valores ofertados para pagamento das outorgas nesses dois eventos foram de R$ 2,1 bilhões e R$ 22,6 bilhões, respectivamente. Essa captação de recursos pelo estado via outorga nas licitações é, na verdade, um “empréstimo” feito pelo estado junto ao prestador vencedor do certame, mas que será pago pelos usuários através das tarifas cobradas pelos serviços. Na Nota Técnica disponibilizada junto à documentação da regionalização em Minas Gerais em consulta pública, há um explícito apontamento disso: “Esse panorama demonstra que a cobrança deve ser instituída de forma fundamentada, para garantir a receita para pagamento do serviço e viabilizar investimentos para universalizar a prestação.” Os valores pagos pela outorga na licitação dos serviços não são investimentos a fundo perdido realizados pelo proponente e, assim sendo, serão reavidos ao longo do prazo de sua atuação na prestação dos serviços. E a forma de reaver esse investimento é apenas uma: por meio das tarifas cobradas dos usuários.
Ainda travado na ALMG, o PL 2884/2021 ainda não tem previsão de apreciação. Não obstante, todos os indícios apontam para um cenário menos desenhado para universalizar os serviços, e mais voltado para o objetivo de privatizá-los. O preço dessa mudança, infelizmente, vai pesar no bolso dos consumidores.