Atuar na área comercial de grandes empresas passa por muitos estilos e maneiras de ser de profissionais que, oriundos de diversas formações acadêmicas, acabam por imprimir, cada um, de per si, a sua marca registrada no jeito de prospectar e conquistar novos negócios. Os engenheiros costumam ser mais objetivos, os advogados mais prolixos, os psicólogos mais cautelosos, os administradores mais organizados e os pastores, há!, os pastores… estes não têm lugar neste cenário, mas se dão muito bem no trato com as salvas de coletas de dízimos e ofertas.

Na vida profissional me capacitei para exercer três profissões: a de advogado, a de administrador de empresas e a de jornalista. A lista não contempla ordem de importância, mas apenas elenca as minhas qualificações originárias. Tivesse me dedicado a apenas uma delas talvez alcançasse mais sucesso em minha trajetória. Mas, não fiz isto, misturei as três e não me especializei em nenhuma. Mas, as três, somadas ao meu estilo pessoal, foram multiplicando pontos para permitir um bom desempenho como caçador de negócios, celebrador de contratos e recebedor de créditos impossíveis. Pensando bem, três profissões concentradas em uma só pessoa terminam por desenhar um talento singular: o cara prospecta, assina o contrato e depois consegue receber pelo trabalho realizado, algo difícil neste país aonde o calote, se o mesmo for robusto, de alto valor, é visto com simpatia e respeito. Falei, acima, que “a soma foi multiplicando….”. Gostei disso, chama-se brincar com as palavras, escrever dedilhando, deixar o texto correr solto, sem amarras, mas com inteligibilidade e a correção possível. Sobre correção, agora que adentro a casa dos setenta, me sinto muito à vontade para escrever à minha maneira, distribuindo vírgulas em sintonia com o meu fôlego, abrindo novos parágrafos à gosto e criando palavras que me sussurram, ao ouvido, os vultos de espíritos desencarnados. Afinal, o nosso Lula, que segundo ele próprio jamais leu um livro sequer, foi responsável pela última reforma ortográfica da Língua Portuguesa, alterada por decreto presidencial.

Mas, de volta à atividade como profissional de área comercial, atuei por mais de duas décadas como superintendente de uma das maiores empresas de construção pesada do país. Sobre este cargo, de superintendente, me recordo de um dos prefeitos de Betim ao mesmo se referir e com conotação à minha pessoa, como um cargo menor, sem importância. Mal sabe ele que existem superintendentes e superintendentes, como existem prefeitos e prefeitos e, que, na ocasião, ser superintendente da empresa na qual me encontrava conferia mais poder do que ser senador da República.

Tenho muitas e muitas histórias, inúmeras de sucessos e outras tantas de fracassos. Estas, dos fracassos, vou deixar, por ora, indisponíveis e recolhidas ao arquivo morto. Mas, felizmente, as primeiras são em maior número. Para quem não está familiarizado com o termo construção pesada, este diz respeito a obras de grande porte, tais como portos, barragens, aeroportos e vai por aí afora. As empresas de construção civil se dedicam a obras de edificação, sendo estas mais corriqueiras, tais como prédios de apartamentos, pontes, drenagem pluvial e outras tantas de menor complexidade.

No Rio Grande do Sul o governador à época era o Alceu Collares, de quem me aproximei através do Carlos Imperial, sim, aquele mesmo, da Jovem Guarda, que lançou o Roberto Carlos, o Erasmo Carlos, a Vanderléa, o Tim Maia e outros tantos, como também o Wilson Simonal. Carlos Eduardo da Corte Imperial, nome solene para alguém tão informal. O imperial, meu padrinho de casamento com a Anna, nas segundas núpcias, e com quem convivi o suficiente para saber de estórias de eriçar os pentelhos, foi vereador no Rio de Janeiro graças aos incentivos que recebeu do seu amigo Alceu Collares, político gaúcho. Imperial abandonou a vida pública, mas não sem antes enviar para os generais de quatro estrelas do Estado Maior do Exército, em Brasília, em pleno vigor da Revolução de 64, cartão de natal com a sua foto nu em pelo e com as nádegas repousando sobre uma privada, defecando. O Collares, a seu turno, anos depois, acabou se elegendo governador do Rio Grande do Sul. Com a cabeça posta a prêmio o Imperial saiu às pressas do Rio de Janeiro e foi se refugiar em Joaíma, no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, mas acabou recolhido ao cárcere da Ilha Grande. Mas, esta é outra estória e fica para depois.

Enfim, lá estava eu, desta feita atuando comercialmente na terra gaúcha. Consegui, em pouco tempo, multiplicar os contratos que a empresa havia conquistado ao longo de muitos anos naquele Estado. Mas, receber os pagamentos, como sempre, era outra estória. O Collares, de quem me tornei amigo, era péssimo pagador. Se o dinheiro do caixa do tesouro do estado era curto, na visão do Collares ele simplesmente não existia, principalmente para quitar faturas de construtoras. Eu sabia como o jogo era jogado, mas seguia em frente. Numa tarde, sem marcar audiência, mas com a cumplicidade da secretária, entrei em sua sala com largo sorriso e a mão fechada. Antes que o governador se exaltasse fui logo explicando: meu amigo, trago nesta mão algo muito importante para tornar o seu dia mais suave. Ele baixou os óculos de leitura sobre a metade do nariz e perguntou do que se tratava. Sentado diante dele abri a mão e lhe mostrei um comprimido Doril, para dor de cabeça: “acho melhor o Senhor tomar este comprimido, governador, porque estou disposto a lhe causar uma baita enxaqueca”. Ato contínuo falei, falei e falei, reclamando dos recebimentos, ou dos pagamentos, se preferir, das faturas em atraso. O governador me escutou, não retrucou e simplesmente pegou o telefone e ligou direto, pelo ramal do Palácio, para o Secretário da Fazenda, de cujo nome não me recordo, pedindo que ele me recebesse naquela mesma tarde.

Saí do Palácio Piratini exultante. Desci acelerado as escadas daquela obra centenária, edificada mediante projeto elaborado pelo arquiteto francês Maurice Gras. Em minha companhia estava o Mário Baltar, engenheiro e fiel escudeiro de muitas jornadas. Fomos direto para a Secretaria da Fazenda, e prontamente recebidos pelo Secretário, a mando do governador. Na sala um sofá preto, em forma de U. O Baltar sentou-se em posição lateral e eu fiquei de frente para o Secretário, quase me debruçando sobre o mesmo. Expus em pausado relato as nossas dificuldades financeiras, e reclamei, com alguma prudência, do atraso exagerado na quitação das faturas referentes às obras e serviços rodoviários, em execução naquele Estado. Por mais que eu me esforçasse o Secretário não me olhava de frente. Olhava para baixo, para cima, para os lados, e acho que também não fazia questão de me escutar, porque ele parecia estar em outro lugar. Em dado momento resolvi reagir. O Secretário estava de pernas cruzadas e exibia sapatos de couro, na cor marrom, sapatos de amarrar, do tipo que se encontra no bazar da esquina. Em movimento rápido, alcancei com a mão o cadarço do sapato que calçava o seu pé direito, desfazendo laço elaborado com esmero fora do normal, muito caprichado. O Secretário se assustou, recolheu prontamente a perna, como se eu tivesse lhe apalpado os testículos e me perguntou, nervoso, se eu era louco. Eu disse que sim, para espanto do Baltar, que imaginava ter que se evadir pulando através da janela do gabinete, e acrescentei: “sim, Secretário, sou louco, de fato, por trabalhar para um estado que não cumpre os seus compromissos e tentar conversar com um Secretário que não me escuta e sequer me enxerga, me tornando invisível”. Temo que o Collares tenha lhe telefonado uma segunda vez, antes da minha chegada, sugerindo ao Secretário me receber, mas apenas para ganhar tempo. Mas, o lance inusitado do cadarço do sapato deu certo. O Secretário se prontificou a examinar o cronograma físico-financeiro da obra e a discutir com governador uma planilha para minorar as dificuldades do contrato. Tempos depois, o governador me telefonou, para fazer breve relato sobre a sua viagem a Hong Kong, onde foi auxiliado, nos seus compromissos, juntamente com a sua comitiva, pela minha cunhada, Alyson Gia, que lá reside. Caio, disse ele, “muito grato pela sua ajuda, através de sua cunhada, em Hong Kong. Mas, devo lhe dizer que o Consul do Brasil passou longo tempo debulhando más falas sobre você”. A sua capacidade de irritar as pessoas é internacional, completou. Ouvi com naturalidade e disse ao Collares que, em outra oportunidade, pessoalmente, eu lhe contaria os motivos da insatisfação do Consul, decorrência da minha passagem por lá, em companhia do governador Roberto Requião, do Estado do Paraná.


9 Comentários

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    Jose Felinto, março 2, 2022 06:52 @ 06:52

    Parabéns Caio por compartilhar comigo caso real e franco.

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    Atilano, março 2, 2022 07:19 @ 07:19

    Amigo Caio: Muito interessante a sua narrativa e sem duvida a multipla formação academica, pode prejudicar em alguns aspectos, porem na grande maioria das vezes, acrescenta uma amplitude de visão nos altos niveis de gestão que apaga, por completo, as eventuais deficiencias
    Um abraço
    Atilano

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    Nelson Rigotto de Gouvêa, março 2, 2022 07:39 @ 07:39

    Caro amigo sumido Caio. Adorei seu relato,como é de seu estilo, verdadeiro e agradável em seus detalhes. Parabéns, aguardando novos e , principalmente, sua presença. Do amigo. Nelson Rigotto

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    Ronei Rezende, março 2, 2022 12:00 @ 12:00

    Meu amigo Caio . Falou com muita propriedade e veracidade sobre o Caio Júlio Cezar Brandão Pinto . Por mais de uma dezena de anos pude acompanhá-lo no dia a dia . Sua narrativa foi perfeita . Este louco amigo é realmente você !!!

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    Victor, março 2, 2022 17:32 @ 17:32

    Caio: um mestre, inclusive na arte mineira de contar “causos”. Um abraço, Victor.
    .

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    Rosana Ribeiro, março 4, 2022 17:33 @ 17:33

    Caio Brandão, o “louco” que eu admiro, e que é um dileto amigo Faz seus relatos de forma impecável!

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    Guilherme Hernandez Filho, março 5, 2022 10:23 @ 10:23

    Caro amigo Caio, como sempre suas histórias são ótimas. Obrigado por compartilhá-las. Abraços.

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    Floriano, março 7, 2022 11:15 @ 11:15

    Caio vc como sempre brilhando.Parabéns e grande sucesso para o novo jornal

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    José Francisco Lopes, março 17, 2022 09:14 @ 09:14

    Parabéns, suas estórias me levam a sua sala tomando um bom vinho e me deliciando com elas. Abs.

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